Quando comparo versões feitas por pessoas diferentes, uma das características que mais diferenciam as melhores versões é a capacidade do versionista de encontrar as obviedades.
São aquelas oportunidades de colocar (quase) a tradução literal de uma frase em um determinado verso, ou de passar uma rima ou uma ideia de forma muito similar, com uma ligeira alteração.
O melhor caso para exemplificar o que estou falando é a versão brasileira da canção Singin’ In The Rain.
Vamos ver o refrão em inglês:
I’M SINGIN’ IN THE RAIN JUST SINGIN’ IN THE RAIN WHAT A GLORIOUS FEELIN’ I’M HAPPY AGAIN. |
Agora me acompanhe numa breve aventura de tentar adaptar esse refrão para português.
Comecemos com a tradução literal:
Estou cantando na chuva Apenas cantando na chuva Que sensação gloriosa Estou feliz outra vez |
Seria ótimo se desse pra colocar “cantando na chuva” no primeiro verso e no segundo. Mas será que cabe?
CANTANDO NA CHUVA CANTANDO NA CHUVA |
Será que deu certo? O papel aceita qualquer coisa. Vamos cantar pra ver como fica:
Eita! Ficou “Cantando na chuVÁ”. 🤔 Por que será?
Por causa de uma coisa chamada “métrica“.
Vamos analisar o ritmo dos dois primeiros versos, colocando 1 para a sílaba mais forte e 0 para a mais fraca:
I’M SING-IN’ IN THE RAIN
─0──1──0─0──0──1
JUST SING-IN’ IN THE RAIN
─0───1───0─0──0──1
Agora vamos analisar o ritmo de “Cantando na chuva”:
CAN-TAN-DO NA CHU-VA
─0───1──0──0──1──0
Opa! Um é 010001 e outro é 010010.
Parece código binário, mas é simples: estamos tentando encaixar uma peça quadrada num buraco redondo.
Por isso que, se tentarmos cantar esse título nesses dois versos, a música vai obrigar a prosódia a se tornar “cantando na chuVÁ“.
Bom, então não dá pra colocar o nome da canção aí.
Então é isso? Não dá pra manter o título e acabou?
Vamos continuar e depois a gente volta para essa questão.
WHAT A GLORIOUS FEELIN’ I’M HAPPY AGAIN. |
Vamos analisar o ritmo desses dois versos:
0010010
01001
Caramba! Olha só! O primeiro verso contém o ritmo de “Cantando na Chuva”: 0010010.
Foi isso que os versionistas da versão brasileira perceberam quando foram adaptar essa canção.
Em entrevista ao Mundo dos Musicais, o versionista Victor Mühlethaler disse:
No caso do “Cantando”, especificamente, existia da produção um medo de como seria esse título, porque é a canção-título do espetáculo. E se você cantar, você vai ver que não encaixa no “I’m singin’ in the rain”. Não encaixa exatamente. Então a produção veio pra gente com essa questão: “Como é que vai ser isso? A gente deixa em inglês? Vocês vão tentar?” E a gente: “Não, a gente quer tentar.” E por ser o título do espetáculo, a gente achou um outro momento que encaixava o título. Então a gente confiou, a gente fez uma versão que a gente sentiu que estava legal.
Victor Mühlethaler, em entrevista ao Mundo dos Musicais.
Então no verso “What a glorious feeling”, podemos inserir o título “Cantando na chuva”. Só fica faltando preencher uma sílaba no início: “What”.
Podemos pensar em “Tô cantando na chuva” ou “E cantando na chuva”. Na versão brasileira do musical, ficou:
E CANTANDO NA CHUVA |
Oba! Agora temos o título da canção (e do espetáculo) inserido na letra. A partir daí, podemos pensar em como adaptar os versos anteriores, ou adaptar primeiro o último verso da estrofe.
Agora entra a sensibilidade do versionista em construir versos bonitos que transmitam a sensação de felicidade do personagem.
Essa versão ficou espetacular. Porque todo mundo: “Nossa, como é que pode fazer ‘Singin’ in the rain, Singin’ in the rain’? Como é que vai fazer? ‘I’m singin’ in the rain’. Como vai ser isso em português?”
Claudia Raia, em entrevista ao Amaury Jr.
E na versão brasileira, ficou assim:
EU CANTO POR AÍ EU DANÇO POR AÍ E CANTANDO NA CHUVA A VIDA SORRI |
Ficou uma poesia. Eu chorei a primeira vez que eu ouvi.
Bruna Guerin, em entrevista ao Amaury Jr.
Colocar o título no terceiro verso da estrofe: uma solução simples, mas elegante.
Vendo a versão pronta, parece uma solução óbvia, mas nem todo versionista conseguiria perceber isso.¹ ² ³
O bom versionista pensa na música como um todo.
“Se não cabe uma informação importante aqui, vou passá-la ali.”
“Se era importante respeitar tal característica, vou mantê-la de alguma outra forma.”
Nas minhas versões, eu sempre estou atento para encontrar essas soluções que vão parecer óbvias depois. É como achar pepitas de ouro: você precisa de sorte para encontrar, mas essa sorte só aparece para quem está procurando. Para mim, essa é a beleza do óbvio.
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