No dia 30 de setembro, em comemoração ao Dia Internacional da Tradução, tive o prazer de participar de um bate-papo com um grupo de tradutoras de peso, que fazem parte do coletivo “Quem Traduziu“. O evento foi realizado na Janela Livraria, no Jardim Botânico, e reuniu Debora Fleck, Elisa Menezes, Julia Scamparini, Marcela Lanius, Maria Cecilia Brandi, Regiane Winarski e Sonia Moreira. Cada uma delas trouxe histórias fascinantes sobre os bastidores do trabalho de tradução literária e suas sutilezas. A conversa girou em torno de um tema central: a arte de traduzir vai muito além do simples ato de passar palavras de uma língua para outra.
A dicotomia entre perdas e ganhos
Um ponto destacado durante o bate-papo foi como o tradutor lida com a eterna tensão entre o que se perde e o que se ganha ao transportar um texto de uma língua para outra. Marcela Lanius, por exemplo, falou sobre os desafios de manter o ritmo, a sonoridade e o estilo do autor em uma nova língua. Ela mencionou um caso específico em que precisou traduzir uma sequência de palavras em inglês que começavam com a letra “B” e traziam uma ideia de algo redondo, para transmitir a ideia de gravidez. Como nenhuma tradução direta funcionava, ela se viu na necessidade de inventar uma solução criativa para transmitir a mesma sensação ao leitor em português:
E aí eu criei “uma bolota redonda e comprimida, um bando, um bucho, uma bolsa jugal” e aí eu terminava com “um papo de uma ave”, porque aí o “papo de uma ave” era o que não tinha B.
Marcela Lanius, sobre o processo de tradução de “Máquina de leite“, de Szilvia Molnar.
Elisa Menezes compartilhou uma experiência igualmente interessante durante a tradução de “Os Abismos“, da escritora colombiana Pilar Quintana. Ao se deparar com o termo “Sandy”, usado para descrever um tipo de gelo com sabor que era popular na Colômbia, ela decidiu consultar a própria autora via Twitter. Pilar respondeu rapidamente, explicando que “Sandy” era “uma marca de água congelada com sabor”, que eles chamavam todos assim, “mesmo os que não eram dessa marca”, e que “as pessoas também faziam Sandy para vender em casa, bastava colocar sabor na água, e congelar em um saquinho plástico”.
Eu falei: “sacolé!” Ótimo, perfeito, fiquei super feliz. (…) Eu nasci no Rio, eu cresci aqui, eu chupava sacolé, é a palavra que eu vou colocar. Outro tradutor ia colocar “geladinho”, ia colocar “dindin”, e ia ser tudo lindo, que todas elas são lindas, e todas estariam certas, mas seriam as escolhas de cada um.
Elisa Menezes
Esses dois casos ilustram o quanto o tradutor não apenas transmite palavras, mas também interpreta culturas, criando pontes de compreensão entre diferentes contextos, respeitando o estilo e o tom do original, ao mesmo tempo em que cria algo novo e funcional para o público da língua de chegada.
A responsabilidade do tradutor: mediação entre autor e leitor
Outro tema importante foi a responsabilidade do tradutor como mediador entre o autor e o público leitor. Traduzir não é simplesmente converter palavras – é interpretar intenções, estilos e, às vezes, até mesmo emoções. Sonia Moreira compartilhou sua experiência ao traduzir a obra de Lucia Berlin, uma autora com uma voz muito distinta. Sonia descreveu como precisou “encarnar” o espírito da autora para capturar sua intimidade e senso de humor, transformando sua escrita de forma que ressoasse com o público brasileiro. A ideia de “recriação” foi amplamente discutida, especialmente no que se refere à tradução de obras clássicas, que trazem um peso maior devido ao conhecimento acumulado ao redor da obra e às expectativas do público.
Sonia também destacou que, no caso de autores já falecidos, o tradutor não tem a opção de consultar o criador da obra, o que aumenta a responsabilidade de fazer escolhas que transmitam a intenção do autor original, mas que também funcionem no idioma de destino. Para ela, esse processo é uma forma de “performance”, onde o tradutor atua como um intérprete, trazendo à vida as palavras de alguém que não pode mais se expressar diretamente. Esse papel interpretativo exige um conhecimento profundo tanto da obra original quanto da cultura do leitor para quem o texto está sendo traduzido.
As batalhas invisíveis: o diálogo com editores e preparadores
A dinâmica entre tradutores e editores/preparadores de texto foi outro ponto de discussão relevante.
Durante o bate-papo, levantei uma questão que muitos tradutores enfrentam: “Na tradução literária, acontece frequentemente de alguém sugerir mudanças que vocês não concordam? Como lidam com essas situações? Há batalhas que acabam perdendo?”
Compartilhei minha própria experiência como tradutor e versionista, mencionando um caso que aconteceu com Victor Mühlethaler, no musical Uma Babá Quase Perfeita, no qual trabalhei como assistente de versão. Citei a visão dele de que é preciso saber “escolher as batalhas”, pois nem todas as nossas escolhas vão prevalecer.
Debora Fleck respondeu que sempre tenta receber o texto revisado pela editora antes da publicação para poder revisar e argumentar sobre possíveis mudanças, não por vaidade ou preciosismo, mas para garantir a qualidade e aprender com o processo. Ela relatou que, embora geralmente consiga esse retorno, esse trabalho é não remunerado e pode ser cansativo, especialmente quando recebe o texto muitos meses depois.
Marcela Lanius também falou sobre a importância de deixar notas e comentários para os preparadores de texto, explicando suas escolhas e, muitas vezes, pedindo que certos trechos sejam mantidos inalterados. No entanto, mesmo com essa precaução, nem sempre as decisões finais estão nas mãos do tradutor, o que pode gerar frustrações quando alterações são feitas sem consulta.
Sonia Moreira trouxe à tona um lado frustrante sobre a relação entre tradutores e editores. Para ela, o processo é muitas vezes unilateral, e o tradutor raramente tem a oportunidade de discutir a fundo as mudanças feitas pelo editor. Ela ressaltou que, embora o tradutor seja o primeiro leitor crítico da obra, é o editor quem detém o poder final de decisão. Essa dinâmica pode ser complicada, especialmente em casos onde o tradutor sente que suas escolhas foram desrespeitadas.
A visibilidade do tradutor e o reconhecimento público
Um dos temas mais debatidos foi a questão da invisibilidade do tradutor. Marcela Lanius e Debora Fleck mencionaram que o grande público, em geral, não percebe que está lendo uma tradução, muito menos valoriza o trabalho do tradutor. Regiane Winarski, no entanto, trouxe uma perspectiva otimista ao falar de sua experiência com fãs de Stephen King e Rick Riordan, que passaram a reconhecê-la como a “voz” desses autores em português. Ela mencionou como isso tem sido uma experiência única e gratificante, já que, em muitos casos, os leitores acabam criando uma conexão com a tradutora, especialmente quando o contato com o autor original é impossível.
A questão da visibilidade é essencial para a valorização da profissão, e o coletivo “Quem Traduziu” tem se empenhado em criar espaços de diálogo com o público para aumentar essa conscientização. Para elas, o reconhecimento do trabalho do tradutor é uma questão de justiça, já que as decisões tomadas durante o processo de tradução influenciam diretamente na experiência de leitura.
Tecnologia e inteligência artificial: uma ameaça aos tradutores?
A discussão também abordou a ascensão da inteligência artificial no campo da tradução. Elisa Menezes e Marcela Lanius falaram sobre a crescente preocupação com o uso de máquinas para realizar traduções, especialmente no mercado editorial. Embora o consenso seja que a tradução literária ainda está a salvo da IA, devido à complexidade e subjetividade do trabalho, há uma preocupação crescente com a possibilidade de que, em algum momento, as editoras passem a utilizar essas tecnologias para acelerar o processo de produção. No entanto, tanto Marcela quanto Sonia enfatizaram que a IA ainda não é capaz de capturar a sutileza, o ritmo e a sensibilidade necessários para uma boa tradução literária.
Regiane Winarski compartilhou um relato que chegou até ela em que uma cláusula contratual foi incluída para impedir o uso de inteligência artificial na tradução de uma obra. Esse tipo de preocupação reflete o receio de que a qualidade da tradução seja comprometida por tecnologias que, embora eficientes em contextos técnicos, ainda não são capazes de lidar com a subjetividade e a interpretação exigidas pela tradução literária.
Quem traduziu o livro que você está lendo?
O bate-papo com as tradutoras do coletivo “Quem Traduziu” foi um lembrete de que a tradução é uma arte que exige não só conhecimento linguístico, mas também sensibilidade, criatividade e, acima de tudo, paixão. Traduzir é mais do que trocar palavras; é mediar culturas, interpretar emoções e, muitas vezes, recriar universos inteiros. Cada decisão tomada pelo tradutor é o resultado de um processo minucioso de pesquisa, interpretação e reflexão.
Após esse evento, sinto que minha compreensão sobre o trabalho da tradução se aprofundou. Todos nós, tradutores, merecemos reconhecimento por nossa contribuição em conectar vozes de diferentes partes do mundo, trazendo ao público da língua de destino histórias que, sem a tradução, permaneceriam inacessíveis para muitos de nós.
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