Cantando na Chuva: a beleza do óbvio

Quando comparo versões feitas por pessoas diferentes, uma das características que mais diferenciam as melhores versões é a capacidade do versionista de encontrar as obviedades.

São aquelas oportunidades de colocar (quase) a tradução literal de uma frase em um determinado verso, ou de passar uma rima ou uma ideia de forma muito similar, com uma ligeira alteração.

O melhor caso para exemplificar o que estou falando é a versão brasileira da canção Singin’ In The Rain.

Vamos ver o refrão em inglês:

I’M SINGIN’ IN THE RAIN
JUST SINGIN’ IN THE RAIN
WHAT A GLORIOUS FEELIN’
I’M HAPPY AGAIN.
Letra de Nacio Herb Brown e Arthur Freed.
Agora me acompanhe numa breve aventura de tentar adaptar esse refrão para português.

Comecemos com a tradução literal:

Estou cantando na chuva
Apenas cantando na chuva
Que sensação gloriosa
Estou feliz outra vez
Tradução do site letras.mus.br

Seria ótimo se desse pra colocar “cantando na chuva” no primeiro verso e no segundo. Mas será que cabe?

CANTANDO NA CHUVA
CANTANDO NA CHUVA

Será que deu certo? O papel aceita qualquer coisa. Vamos cantar pra ver como fica:

Eita! Ficou “Cantando na chuVÁ”. 🤔 Por que será?

Por causa de uma coisa chamada “métrica“.

Vamos analisar o ritmo dos dois primeiros versos, colocando 1 para a sílaba mais forte e 0 para a mais fraca:

I’M SING-IN’ IN THE RAIN
─0──1──0─0──0──1

JUST SING-IN’ IN THE RAIN
─0───1───0─0──0──1

Agora vamos analisar o ritmo de “Cantando na chuva”:

CAN-TAN-DO NA CHU-VA
─0───1──0──0──1──0

Opa! Um é 010001 e outro é 010010.

Parece código binário, mas é simples: estamos tentando encaixar uma peça quadrada num buraco redondo.

Por isso que, se tentarmos cantar esse título nesses dois versos, a música vai obrigar a prosódia a se tornar “cantando na chu“.

Bom, então não dá pra colocar o nome da canção aí.

Então é isso? Não dá pra manter o título e acabou?

Vamos continuar e depois a gente volta para essa questão.

WHAT A GLORIOUS FEELIN’
I’M HAPPY AGAIN.

Vamos analisar o ritmo desses dois versos:

0010010
01001

Caramba! Olha só! O primeiro verso contém o ritmo de “Cantando na Chuva”: 0010010.

Foi isso que os versionistas da versão brasileira perceberam quando foram adaptar essa canção.

Em entrevista ao Mundo dos Musicais, o versionista Victor Mühlethaler disse:

No caso do “Cantando”, especificamente, existia da produção um medo de como seria esse título, porque é a canção-título do espetáculo. E se você cantar, você vai ver que não encaixa no “I’m singin’ in the rain”. Não encaixa exatamente. Então a produção veio pra gente com essa questão: “Como é que vai ser isso? A gente deixa em inglês? Vocês vão tentar?” E a gente: “Não, a gente quer tentar.” E por ser o título do espetáculo, a gente achou um outro momento que encaixava o título. Então a gente confiou, a gente fez uma versão que a gente sentiu que estava legal.

Victor Mühlethaler, em entrevista ao Mundo dos Musicais.

Então no verso “What a glorious feeling”, podemos inserir o título “Cantando na chuva”. Só fica faltando preencher uma sílaba no início: “What”.

Podemos pensar em “Tô cantando na chuva” ou “E cantando na chuva”. Na versão brasileira do musical, ficou:

E CANTANDO NA CHUVA

Oba! Agora temos o título da canção (e do espetáculo) inserido na letra. A partir daí, podemos pensar em como adaptar os versos anteriores, ou adaptar primeiro o último verso da estrofe.

Agora entra a sensibilidade do versionista em construir versos bonitos que transmitam a sensação de felicidade do personagem.

Essa versão ficou espetacular. Porque todo mundo: “Nossa, como é que pode fazer ‘Singin’ in the rain, Singin’ in the rain’? Como é que vai fazer? ‘I’m singin’ in the rain’. Como vai ser isso em português?”

Claudia Raia, em entrevista ao Amaury Jr.

E na versão brasileira, ficou assim:

EU CANTO POR AÍ
EU DANÇO POR AÍ
E CANTANDO NA CHUVA
A VIDA SORRI
Versão brasileira de Mariana Elisabetsky e Victor Mühlethaler.

Ficou uma poesia. Eu chorei a primeira vez que eu ouvi.

Bruna Guerin, em entrevista ao Amaury Jr.

Colocar o título no terceiro verso da estrofe: uma solução simples, mas elegante.

Vendo a versão pronta, parece uma solução óbvia, mas nem todo versionista conseguiria perceber isso.¹ ² ³

O bom versionista pensa na música como um todo.

“Se não cabe uma informação importante aqui, vou passá-la ali.”

“Se era importante respeitar tal característica, vou mantê-la de alguma outra forma.”

Nas minhas versões, eu sempre estou atento para encontrar essas soluções que vão parecer óbvias depois. É como achar pepitas de ouro: você precisa de sorte para encontrar, mas essa sorte só aparece para quem está procurando. Para mim, essa é a beleza do óbvio.


Comentários

2 respostas para “Cantando na Chuva: a beleza do óbvio”

  1. Excelente artigo! Uma aula de como versionar!

  2. Avatar de Cátia Deise
    Cátia Deise

    Uma verdadeira aula de pós graduação!!! 👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽

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