Como versionar um musical

O teatro musical vem ganhando cada vez mais espaço no Brasil. E com isso, cresce o número de musicais de fora montados por aqui. Mas como traduzir um musical sem ficar esquisito?

A primeira coisa a saber é que, quando se passa um musical de um idioma para o outro, não é comum chamar de tradução, mas sim de versão ou adaptação.

O profissional responsável por adaptar musicais para o nosso idioma é chamado de “versionista”.

Ao adaptar uma música, o versionista tem em mente cinco aspectos principais:

  1. Sentido
  2. Rimas
  3. Métrica
  4. Prosódia
  5. Clareza

Sentido

Manter o sentido não significa traduzir literalmente. Muitas vezes o tradutor precisa se afastar do significado das palavras para restituir a essência.

No livro Quase a mesma coisa, Umberto Eco dá um exemplo simples:

“Suponhamos que num romance inglês um personagem diga it’s raining cats and dogs. Tolo seria o tradutor que, pensando dizer a mesma coisa, traduzisse literalmente estão chovendo cães e gatos.”

Numa canção, pode haver piadas, referências, trocadilhos e expressões populares. É trabalho do versionista encontrar a melhor maneira de causar no espectador do idioma de destino os mesmos efeitos que a letra original causa no espectador da língua do musical.

Rimas

No livro Finishing the Hat, o grande compositor e letrista Stephen Sondheim diz que “a diferença imediata entre uma letra de música e um diálogo é o uso consciente da rima”.

Você provavelmente já tem uma noção de rima, mas talvez não saiba que existem tipos de rimas. Uma rima pode ser perfeita, que é quando duas palavras têm exatamente o mesmo som final, ou imperfeita, também chamada de rima falsa, que é quando há uma aproximação de sons, mas não uma rima exata.

No livro Finishing the Hat, Sondheim cita o compositor e letrista Craig Carnelia:

“A rima perfeita é uma necessidade no teatro [musical], como um guia para o ouvido saber o que ele acabou de ouvir. A nossa língua é tão complexa e difícil, e há tantas palavras e sons similares que significam coisas diferentes, que já é confuso o bastante sem usar rimas imperfeitas que apenas dão ao ouvido uma vogal familiar… [Uma rima falsa] não é útil para o propósito primário de uma letra, que é ser ouvida, e ensina o ouvido a não confiar ou a desconsiderar uma letra, a não escutar, a simplesmente deixar a música transcorrer.”

“Na verdade, a rima não é um preciosismo nosso, ela serve pra você entender. Porque se você tem uma dificuldade às vezes de entender o próximo verso, você sabe como ele termina, o seu cérebro completa a informação e você entende aquela letra perfeitamente.”

Victor Mühlethaler

“E também, a rima pode pegar algo que não é tão forte e fazer muito forte. Se você conta uma piada em rima, é duas vezes mais engraçada do que seria se só a contasse em prosa, se fosse só uma fala. As mesmas palavras! Mas a rima fortalece a piada.”

Stephen Sondheim

Também no Finishing the Hat, o Sondheim explica:

“Existem, é claro, vários motivos para rimar além de enfatizar uma palavra, o principal deles sendo o puro prazer da brincadeira verbal, tais como o uso de rimas internas e rimas com trocadilho […]. Há motivos para não rimar, também — não apenas não rimar, mas manter os sons das consoantes e vogais o mais diferente possível.”

Portanto, um dos aspectos da boa versão é o respeito às rimas da canção original. E quando o letrista não faz uma rima, isso também precisa aparecer na versão.

Métrica

Para entender métrica, pega uma frase qualquer.

UMA FRASE QUALQUER

Seis sílabas. Perceba que ela tem um ritmo.

U-MA FRA-SE QUAL-QUER

Se colocarmos o número 1 para a batida mais forte e 2 para a mais fraca, teremos:

1 – 2 – 1 – 2 – 2 – 1

Uma FRAse qualQUER

Nós podemos dar uma nota para cada sílaba:

Veja que a frase tem um ritmo específico e cada sílaba possui uma nota:

Toda canção é assim. Se fôssemos passar para outro idioma, teríamos que nos preocupar em manter esse ritmo e o número de sílabas ou de notas. O fundamental é não criar nota que não tem no original e respeitar o estilo da canção.

Prosódia

O dicionário Aurélio define a prosódia como: pronúncia regular das palavras, com a devida acentuação.

Cada palavra tem o seu próprio ritmo. Se você pronunciar “sábia” com a prosódia errada, vira um sabiá, sabia? Então o versionista precisa encontrar frases que caibam no ritmo da música original.

“Eu acho que o melhor jeito de explicar prosódia é mostrar uma prosódia que está errada. Por exemplo, a música da Marisa Monte que ela canta: O meu coração é um músculo involuntário. O que que acontece? A tônica da música, o acento da música está num lugar que não é o acento da palavra. Então teria que ser: O meu coração é um músculo involuntário. Então é fazer bater a tônica da palavra com a nota forte da canção.”

Mariana Elisabetsky

“Se você escuta uma palavra com a prosódia errada, você não entende a palavra.”

Victor Mühlethaler

Veja estas cenas do filme Saneamento Básico e perceba como é estranho quando se faz um erro de prosódia:

No filme, o personagem fala “SOU eu”, em vez de “sou EU”. O natural seria “vo es” e não “VOEStá”. O certo é “machuCOU” e não “MAchucou”.

Quando se coloca a tônica no lugar errado da palavra, se comete um erro de prosódia. E isso tem um nome: é uma silabada.

Se você não respeitar a prosódia (encaixar o ritmo da música com o ritmo das palavras), vai ficar estranho e difícil de entender.

Clareza

Por último, mas não menos importante, temos o elemento da clareza.

No livro The Craft of Lyric Writing, Sheila Davis escreve:

“Acima de tudo, o sentido precisa ser imediatamente claro. Diferente de um poema, que existe no papel, uma canção existe no tempo, enquanto o motor da sua melodia impulsiona as palavras. O ouvinte, diferente do leitor, não recebe notas de rodapé e precisa entender a letra enquanto ela está sendo executada. Um verso confuso ou uma palavra incompreensível vão descarrilhar a atenção do ouvinte. Diferente de um poema, cuja linguagem pode ser tão abstrata quanto uma pintura cubista, uma letra deve ser tão direta quanto uma placa de estrada. O principal, uma letra é projetada para ser cantada. Quem a escreve, portanto, deve ser instintivamente musical e deve escolher palavras que rolem da língua e voem em notas altas. Cada palavra deve cantar.”

“Se a poesia é a arte de dizer muito em pouco, fazer letra é a arte de encontrar o equilíbrio certo entre dizer demais e não o bastante.”

Stephen Sondheim

Ter clareza também significa evitar inversão. Um exemplo de inversão é o começo do Hino Nacional.

Ouviram do Ipiranga as margens plácidas
De um povo heroico o brado retumbante

Essa frase está toda invertida. Se fôssemos falar da forma mais natural, seria:

As margens plácidas do Ipiranga ouviram
O brado retumbante de um povo heroico
Quem escreveu o Hino Nacional foi o Mestre Yoda?

“Eu luto pra evitar a inversão, o máximo possível, porque o seu cérebro não acompanha. O importante é você fazer o cérebro acompanhar a informação e ser claro, tentar ser o mais claro possível. Então eu sempre penso: como que isso pode ser cantável, estar dentro de todas essas questões técnicas e contando a história de uma maneira… eu não gosto de dizer ‘simples’ porque eu acho que é um trabalho bastante sofisticado, mas que seja fácil de entender. Porque a pessoa não vai ter tempo pra ouvir aquilo mil vezes, a pessoa vai sentar ali no teatro e ela quer entender aquela história inteira. Então você não pode fazer uma coisa que ela vai ter que parar pra pensar no que você escreveu, e aí ela já perdeu a letra seguinte.”

Victor Mühlethaler

O alvo final

Esses são os cinco pilares da versão musical. O bom versionista consegue respeitar o letrista original, se preocupando com esses cinco elementos, ao mesmo tempo que cria uma nova letra bonita e que soa natural.

No livro Os Reis dos Musicais, o versionista Claudio Botelho escreve:

“O importante, para finalizar, é o público não perceber que está diante de uma tradução. Tudo deve soar como se fosse escrito originalmente na nossa língua. Há momentos em que é preciso […] mudar completamente uma letra, subverter completamente uma ideia, mas vale o sacrifício se o resultado traz o espectador para dentro da peça, como geralmente é o alvo final de todo musical.”

Você já tentou adaptar alguma música para o português? Conta nos comentários como foi!


Comentários

Uma resposta para “Como versionar um musical”

  1. […] já falei aqui neste blog sobre como versionar um musical. Naquela publicação, eu trouxe as cinco principais questões que se deve levar em consideração […]

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