Se você já assistiu a um musical da Disney até os créditos de dublagem, com certeza já viu o nome do Félix Ferrà creditado pela direção musical e adaptação musical. Neste post, você vai saber mais sobre quem é Félix Ferrà, sua trajetória na dublagem e seu método de trabalho na hora de adaptar músicas.
Sobre Félix Ferrà
Félix Ferrà é um diretor musical, versionista para dublagem e músico especialista em Canto Gregoriano, e é Membro Honorário da Academia Nacional de Música.
Félix Ferrà possui graduação em Química Industrial e em Filosofia-Teologia, mas foi na música sacra que ele se encontrou:
Quando entrei na Abadia de Solesmes, em Paris, e vi os monges cantando os ofícios, tive certeza de minha vocação. Sou um esteta: a beleza musical e visual me fascina.
Félix Ferrá, em entrevista à Revista República (Out 1998 – ANO 3 – N° 24 – pág. 22)
Félix tem formação na área de música como regente de coro pela Escola Villa-Lobos, onde também estudou piano e alguns outros instrumentos. Foi professor e organista da Abadia de Nossa Senhora do Monserrate de 1991 a 2001 e, desde 1993, é produtor e apresentador do programa “Som Infinito” da Rádio MEC FM, do Rio de Janeiro. Em 2012, criou o Codex Sanctissima, um dos mais importantes conjuntos de música antiga do Brasil, no qual ele atua como diretor musical. O grupo lançou, em 2014, um álbum intitulado Rosa das Rosas.
Na dublagem, é um dos principais diretores musicais e versionistas em atividade. Diretor musical na Delart, Félix Ferrà entrou no ramo por intermédio de um convite feito em 2001. Seu primeiro grande projeto foi Mogli 2, em 2002, e, logo em seguida, O Irmão Urso. Conquistou três vezes o prêmio de Melhor Diretor Musical em dublagens cinematográficas. Entre seus trabalhos na dublagem, estão a direção musical e as versões de Frozen – Uma Aventura Congelante e toda a parte musical da série Phineas e Ferb.
Entrevista
Klaus Bentes: Como você entrou na dublagem? Foi por um convite, certo?
Félix Ferrà: Isso. Foi em 2001. Eu estava, digamos, livre, sem um trabalho determinado, mas ainda lidando com o meu conjunto Benedictus, que é um conjunto que eu tive até 2010, também de música vocal. E nesse conjunto, em algumas apresentações, estava presente essa pessoa do cliente que depois veio a fazer o convite. Então na verdade a Delart estava procurando uma pessoa pra poder trabalhar nessa área. Então por intermédio de uns amigos, tinha uma pessoa que trabalhava aqui, um funcionário da casa, e essa pessoa conhecia uma grande amiga minha. (…)
Nesse ano de 2001, essa minha amiga Carla Marinho falou de mim para uma outra pessoa que trabalhava na Delart, que me apresentou aos prezados Sérgio De La Riva e ao Sr. Carlos De La Riva, fundador da Delart. E quando essa pessoa trouxe o meu nome para cá, o representante da Disney, o grande Garcia Júnior, muito prezado, me conhecia dos concertos do Benedictus. E aí foi, digamos assim, uma facilitação. Eu não cheguei como um nome desconhecido, ele já conhecia meu trabalho dentro do grupo. Então eu fui chamado, fiz algumas entrevistas, passei um ano fazendo mais ou menos alguns testes, até que em agosto/setembro de 2002 eu fui informado que faria o Mogli 2, que foi então o meu primeiro cinema.
Klaus: Mas quando você foi chamado, foi pra ser o diretor ou pra fazer as versões ou os dois?
Félix Ferrà: Foi para fazer as duas coisas já, porque nesse período de testes eu já vinha fazendo as duas coisas. Na verdade, eu tinha isso um pouco como uma estratégia de trabalho. Eu não queria mesmo que outra pessoa fizesse as versões, entendeu? (risos) Tanto é que assim é até hoje. Eu raramente, em todos esses anos, pedi a outra pessoa que fizesse as versões, porque eu prefiro trabalhar com as versões que eu mesmo faço.
Klaus Bentes: Em Muppets, foi você com o Pavlos?
Félix Ferrà: Teve alguns trabalhos que o Pavlos Euthymiou me ajudou, mas foram poucos. Não sei dizer agora se Muppets foi um deles. Pode ser. Agora assim de cabeça não me lembro, mas teve alguns poucos trabalhos que a gente fez essa parceria, por causa da quantidade de coisas que estava acumuladas.
Klaus Bentes: Do prazo também, né?
Félix Ferrà: Claro, claro. Você imagina, eu tinha duas, três coisas grandes, complicadas acontecendo ao mesmo tempo… Você tem um limite físico, né? Você precisa dormir, você precisa comer. Chega um ponto que você vê, “bom, isso daqui eu não vou conseguir”, e aí nesses momentos eu pedi ajuda ao Pavlos.
Klaus Bentes: E quanto que é o prazo geralmente para um filme?
Félix Ferrà: O filme chega muito cedo, o problema é que ele chega em versões. As versões, às vezes, ainda são a serem modificadas. Em música, existe o problema da partitura. A partitura é uma das últimas coisas a chegar. Às vezes, já chegou tudo, já chegou até o vídeo final, que é uma coisa bem final do processo, e a partitura ainda não tá pronta. E, às vezes, chega uma partitura que não é a final. E aí não vale a pena trabalhar com ela. Vale a pena começar, estudar, verificar quais são os corpos que vão precisar ser convocados, de coros, de solistas e tal, mas pra fazer o trabalho de adaptação, se não é final, você pode até rascunhar alguma coisa, mas sabendo que aquilo ali é pra ser refeito. Então a partitura é esse limitador que, como eu disse, embora o processo tenha uma certa antecipação, esse limitador me deixava às vezes, em alguns casos, com menos de um mês para trabalhar, 20 dias. Isso é muito pouco. Se o filme tem quinze canções, 20, 15 dias pra adaptar é muito pouco.
Klaus Bentes: Como é o seu processo de versão? Os tradutores para dublagem fazem a tradução do filme, fazem a tradução literal da música e você trabalha em cima daquilo?
Félix Ferrà: Não, eu não trabalho em cima daquilo, mas… Eu não trabalho em cima daquilo no sentido de que eu não uso aquela letra. Na verdade, assim, a gente procura até abstrair bastante daquela letra, porque ela não leva em consideração os aspectos musicais. Aquilo é, como você falou aí, aquilo é uma tradução literal. Por que que ela é importante? Por que que é importante que o tradutor do script traduza as canções? De uma maneira literal, como estamos dizendo, literal e em prosa, digamos assim, sem se preocupar com rima, com nada disso, nem com métrica… É importante por quê? Como ele conhece o texto por completo e muitas vezes é o tradutor que toma decisões com relação a expressões, cacoetes que algum personagem usa, os próprios nomes dos personagens… Às vezes, em projetos muito sofisticados, não, o cliente é que envia tudo, quer que chame assim, quer que chame assado, ou então pede sugestões. Mas quando a letra traduzida vem pro adaptador, ela meio que já passou por esse processo, então ali você tem uma fonte segura de nomes, expressões, como que fulano fala tal coisa, então essa tradução literal da canção feita pelo tradutor do script tem essa função, que a gente que vai adaptar a canção não faça de forma diferente nem mude os nomes nem use expressões diferentes que estão sendo usadas no resto do filme inteiro. Digamos que o cara passe o filme inteiro falando toda hora “Hey, man! How do you do?”. Digamos que esse seja um cacoete dele. Aí a tradutora ou tradutor resolveu fazer “E aí, cara, belê?”. (risos) Eu vou ter que manter isso na canção caso isso apareça na canção, senão fica uma coisa discrepante. É essa a função dessa tradução.
Klaus Bentes: Mas antes de começarem a gravar, vocês têm que decidir, por exemplo, se na música, aquela tradução não cabe, você tem que…
Félix Ferrà: Ah, claro. Às vezes, isso acontece. Às vezes, esse tipo de exemplo que eu dei acaba sendo algo marcante na música. Justamente como é um bordão do personagem, na música acaba virando até um refrão. E aí não fica bom. Aí a gente tem que fazer o processo inverso. Então essa comunicação tem que haver. Não rola isso de cada um no seu quadrado fazendo sua parte. Não. Até certo ponto, mas há vários momentos em que tem que interagir. Então quando isso acontece vai ter que fazer o trajeto oposto. Eu vou ter que ir ao tradutor, dizer “Olha, eu entendi, mas isso não vai caber, não vai ficar bom” e aí você dá sugestões… Ou conversa, marca uma reunião, por telefone… Porque isso precisa ser resolvido. E às vezes tem que voltar inclusive ao cliente, dependendo da forma como a coisa é feita, né? Não, tem que haver sim essa comunicação.
Klaus Bentes: Quando você começa a trabalhar numa obra, o que você faz?
Félix Ferrà: A primeira coisa é ver o filme. A primeira coisa é ver o filme para você entrar minimamente no clima do filme, entender a história. É claro que, para isso, como o filme não está dublado, você tem que ter um bom inglês. Eu diria que um dos limitadores da boa qualidade desse trabalho é esse, quando a pessoa quer fazer esse trabalho com um conhecimento de inglês limitado. Porque você não recebe o filme dublado. Então se você vai assistir o filme pra poder fazer uma boa versão e você precisa entender o filme pra isso… Claro que você não precisa entender o filme nos seus mínimos detalhes, mas você precisa assistir o filme pra ter uma visão geral do filme. Então aí vai da sua capacidade de entender o filme na língua original. Obviamente que você também tem que ter um excelente inglês pra fazer a própria adaptação Porque adaptar é mais difícil do que traduzir. (risos) Traduzir você pode usar a primeira tradução da palavra que te ocorre, pra versão você tem que conhecer muitas, pra escolher qual a melhor, qual a que tem tanta sílabas, qual a que vai rimar. Então é um conhecimento de inglês… Claro que pode ter outras línguas, né? Nesses anos, também já fiz versões pra italiano, pra francês. É pouquinho, mas teve, teve um ou outro. A primeira etapa então é essa.
Klaus Bentes: Então quando você vai adaptar uma música, você começa por onde?
Félix Ferrà: A música é ouvida inteira. A música popular, quase que 99% dos casos, sempre tem refrão. Essa é uma característica quase que impossível de não existir na música popular. Quase que caracteriza a música popular, o refrão. Uma das coisas que você usa pra dizer que uma coisa é música clássica é “pô, nada repete, onde é que eu tô?”. Uma pessoa que não gosta ou não consegue acompanhar música clássica, geralmente a queixa dela é essa. Ela não identifica padrões que se repetem. Na música popular, é exatamente isso que acontece. Então o refrão é muito importante, obviamente. Então quando você ouve a música uma, duas, três vezes, você começa a se familiarizar com esse refrão em inglês. Eu trabalho assim. Sabe que não existe um curso disso, né? Foi um método que eu desenvolvi, então pode ser que haja outros melhores, mas eu trabalho assim. Eu procuro absorver a música em inglês, me tornar um conhecedor, quase que um coautor, no sentido metafórico, de ter a música como minha. Deu pra entender o que eu quis dizer? Isso é feito como? Ouvindo. Ouvindo, acompanhando partitura. Por isso que partitura é um elemento fundamental. Partitura nesse trabalho é uma das coisas mais (risos) espinhosas, porque pra quem não é músico, a partitura é uma “frescura”. “Ah, pra que partitura, você não tá ouvindo?” É, pra que script? Você não tá ouvindo a pessoa falar o diálogo, então pra que script? “Ah, porque a pessoa tem que ler.” Ah, a pessoa tem que ler? E por que que não pode simplesmente falar “ó, agora você vai falar, ‘Oi, Richard, tudo bem?’”, e aí o dublador fala. Por que que tem que ter um script? Porque aquilo é um instrumento. A partitura é mais que isso. Porque na partitura você tem indicações, além de notas e letras, você tem indicações de andamento, de fraseado de et cetera e et cetera. É bem contraditória a avaliação que em geral se faz da importância da partitura pra importância que ela realmente tem. Então eu já mencionei pra você mais atrás que a partitura às vezes é a última coisa a chegar. Então isso já demonstra um pouco isso. Mesmo para o processo em si, a partitura é algo que pode vir depois. E às vezes não vem. Já gravei sem partitura. Clientes que não têm costume de fazer musicais, grandes musicais, simplesmente não sabem que tem que ter uma partitura, não sabem a importância da partitura e acabam não tendo partitura. Não é por descuido, essas coisas, não, é porque não têm prática, não existe um costume de fazer grandes musicais. Então aquele problema não surgiu ainda. Então de vez em quando eu tive que trabalhar sem partitura.
Klaus Bentes: Phineas e Ferb tinha?
Félix Ferrà: Tinha. Tudo no cliente do Phineas e Ferb tem partitura. Tudo. Rarissimamente não tem, porque é um cliente que sabe a importância da partitura para o trabalho ficar bom. Mas então voltando, então é acompanhando a partitura, ouvindo a música, que você vai começando a ver: bom, a estrutura da música é essa, às vezes ela tem uma introdução, depois ela tem uma estrofe, um refrão, depois outra estrofe, aí tem uma ponte no meio, que ela meio que muda… Você tem que montar essa estrutura. Uma vez essa estrutura montada, você sabe onde que você tem que amarrar, porque quase sempre o resto da música depende dessa estrutura central, que basicamente são os refrões e a forma como eles estão distribuídos. Então o meu método é assim. Eu começo pelas coisas que eu sei que são estruturais dentro daquela composição. Porque a composição é uma arquitetura. Por mais simples… Então você marca aqueles pontos estruturais, trabalha neles, deixa eles muito bons, depois você volta e vem fazendo o resto.
Klaus Bentes: Você usa algum dicionário de rimas?
Félix Ferrà: Uso, mas não é que isso seja um fator essencial do trabalho nem do processo. Na maioria do tempo, não uso, não. Uso quando você empaca ali num problema e aí você precisa ter umas ideias, uns exemplos diferentes, porque às vezes você fica muito focado numa coisa e perde, né? Não diria que usar dicionário de rima e sinônimo seja uma estratégia, não é. Não é assim que se trabalha. Acho que é mais importante você ter um foco próprio seu, do seu próprio repertório da língua, e aí numa necessidade sim você usa. Entendeu o que eu quis dizer?
Klaus Bentes: Sim, agora uma coisa mais específica. Você faz várias possibilidades para um refrão e depois escolhe um? Por exemplo, como você chegou a “Livre Estou” pra “Let it Go”?
Félix Ferrà: Sim, acontece de uma coisa ser feita e depois melhorada, isso acontece. A minha primeira opção não foi Livre Estou. A minha primeira opção acabou sendo usada em outro país.
Klaus Bentes: “Já Passou”?
Félix Ferrà: Não sei como. A minha primeira opção foi “Já Passou”. Inclusive, eu a gravei nos testes. De algum modo ela foi parar em outro país, como a opção de outro país. Mas é isso, tô dando um exemplo, né? Sobretudo quando o projeto é muito importante, a gente entra numa espécie de uma neurose. Eu sou perfeccionista e eu não considero isso nenhuma virtude. Perfeccionismo na maior parte do tempo é um defeito. Eu acho. Porque eu, comparando o meu trabalho com o trabalho de outras pessoas, eu vejo que eu perco muito tempo buscando perfeição e, às vezes, depois, eu volto atrás para uma coisa que eu já tinha visto antes. (risos) Mas o que eu quero dizer com isso é que a gente está sempre procurando… Mesmo às vezes de noite, eu tô querendo pegar no sono e aquela porcaria tá na minha cabeça. Quantas vezes, ao longo desses anos, eu acordei de madrugada pra anotar uma solução, que não tinha me ocorrido acordado. Porque o subconsciente trabalha assim. Dormindo, eu tinha uma solução, acordava e anotava. (risos) Isso aconteceu muitas vezes. Não sei lhe dizer agora se “Livre Estou” foi assim. Porque “Livre Estou” não tem nada a ver com “Let it Go”, concorda? (risos)
Klaus Bentes: É a essência, né?
Félix Ferrà: É a essência, mas também tem uma coisa de labiais. Isso é uma tensão que está sempre na cabeça do adaptador. Você quer dizer o que precisa ser dito, você quer rimar, você quer a métrica, mas você também quer uma coisa que fique boa na boca. E eu diria que todas as outras coisas, ou seja, dizer o que precisa ser dito, com métrica, com rima, tudo isso ainda é poética, ainda está na arte da poética, da música, que são artes irmãs. Boca é uma coisa completamente de outro mundo. Então a grande briga é essa: que isso fique bom e também tenha isso [labiais parecidas]. Porque às vezes você acha soluções maravilhosas… “Já Passou” tem o “-ou” do “Go”, mas tem essa porcaria desse “Pa-”, que nos closes de “Let it go” não tem nenhum “P”. Entendeu? Então eu logo abandonei o “Já Passou” por causa disso. Ele é uma solução aqui [no lado da poética] talvez a melhor, mas perde isso [na questão da boca]. E aí eu fiquei sofrendo com isso, com essa briga, é essa briga aqui que não deixa a gente dormir. Até que veio o “Livre Estou”, que embora tenha uma labial, como é “V”, ela é menos marcante do que o “Pa”. O “V” é uma labial que se enrola melhor. Mas respondendo a sua pergunta, isso acontece em projetos importantes, em projetos menos importantes, não. Na minha experiência, muitas vezes a primeira solução que eu acho é a melhor, mesmo quando eu acho outras. Acabo voltando para a primeira. É uma coisa que acontece comigo. O primeiro insight costuma ser de maior qualidade. Sem que isso seja uma regra, é claro.
Klaus Bentes: Voltando ao início do seu trabalho, você já fazia versão para música sacra, né? Aí você sabia respeitar prosódia, tudo mais. Então você já tinha bastante bagagem.
Félix Ferrà: Sim, sim. É, isso foi uma das coisas que eu encontrei, assim, como um pouco… não muito regular nesse trabalho. Eu comecei a ver as outras coisas que eram feitas, com exceção de uma ou outra pessoa que faziam trabalhos excelente antes de mim, mas o que eu via principalmente de fora daqui da Delart, do Rio, eu via que era feito de uma maneira muito não respeitando esses princípios, principalmente de prosódia. Quando eu falava essa palavra, eu percebia que as pessoas não sabiam o que que eu tava falando. Algumas vezes eu tive que sentar para explicar.
Klaus Bentes: Na dublagem, você tem que respeitar labial, mas no teatro musical, não. Você nunca se interessou em trabalhar no teatro musical fazendo versão?
Félix Ferrà: Nunca me interessei não é bem a palavra. Eu nunca tive, na verdade… Eu não tinha tempo pra dormir. Durante alguns anos, eu não tinha tempo para nada. Não tinha tempo pra nada. Se alguém me convidasse, o que nunca aconteceu, eu simplesmente não poderia. Embora eu tenha conhecido durante esses anos muitas pessoas da área do teatro musical, houve um período que eu andei indo assistir algumas coisas. Porque como eu comecei a conviver com as pessoas, elas começaram a me levar, gostei um pouco e tal. E aí, depois, acabei conhecendo essa área mais como espectador e de conversar, tanto com os diretores quanto com os atores-cantores, que acabavam trabalhando comigo aqui na dublagem, vários deles. Agora, convite pra trabalhar, nunca recebi e, se tivesse recebido, simplesmente não teria podido aceitar.
Klaus Bentes: Os clientes entendem de prosódia e métrica? Eles interferem?
Félix Ferrà: Alguns entendem, outros não. (risos)
Klaus Bentes: Mas eles chegam a obrigar você a usar uma outra coisa que não vai caber?
Félix Ferrà: Às vezes, o cliente tem necessidade que você use alguma coisa que pra ele é importante devido a algum vínculo com outro trabalho, alguma coisa que ele vai precisar para o marketing. Então às vezes vem, “olha, isso daqui tem que ser usado”.
Klaus Bentes: Como você explicaria o que é o trabalho da versão para um leigo?
Félix Ferrà: A versão é uma tradução adaptada, por isso que às vezes se chama essa versão de adaptação. Não adianta você fazer uma tradução literal, porque não vai dar pra cantar. Então você tem que pegar o sentido daquela frase, depois de ter entendido o sentido do todo. Então é como eu falei mais atrás, primeiro você vai se apropriar do todo. Isso é importantíssimo. Depois que você se apropriou do todo, aí você pode começar a fracionar a composição nas suas frases ou nos seus dísticos ou no seu refrão, mas sem perder nunca o contato com o todo. Isso é um grande risco. As piores versões – que tem muitas por aí – são essas, a que você vê nitidamente que o cara traduziu frase a frase sem pensar no todo. Essas são as piores versões. Não são nem as que têm problema de labial ou de métrica ou de prosódia. Pra mim, as piores versões são as que não são orgânicas. São as versões Frankenstein. Então é isso, depois que você se apropriou do todo… Lembra que eu falei disso? Que a primeira coisa que eu fazia era isso? Assistir o filme e depois assistir a música. Ouvir a música e tentar se tornar uma espécie de coautor dela, porque é isso que você vai acabar sendo, não é isso? Como versionista, você não vai acabar sendo um coautor? Então você tem que de fato se tornar isso, não apenas brincar de ser isso. E como é que você faz isso? Ouvindo, muito, muito, muito, muito. Tentando de certa forma se identificar com aquilo. Aí, uma vez feito isso, você pode sim se debruçar sobre uma frase e aí aquele sentido, dentro do todo, você tem a liberdade de mudar. E essa mudança, para quê? Para dizer aquilo com as palavras que atendem métrica, prosódia e rima.
Klaus Bentes: O que que é prosódia?
Félix Ferrà: A música tem sempre tempos fortes e fracos. Então você tem que fazer casar as sílabas fracas das palavras e fortes das palavras com os tempos fracos e fortes da música. (…) A prosódia é mais que isso, mas pra nossa finalidade aqui, seria isso. A prosódia é um tema da poética que tem muitas outras nuances. Porque a prosódia, ela é mais especificamente das línguas clássicas. As nossas línguas não têm exatamente uma prosódia, elas têm acentuação, é diferente. A prosódia é mais ligada ao canto. Sabe-se que as línguas clássicas – o grego, o romano – eram línguas cantadas. Então não se acentuavam, porque na verdade você não tinha sílabas acentuadas, você tinha sílabas longas e breves. Você vê como o italiano até hoje ainda é uma língua cantada, essa é uma forma de entender o que eu estou falando. Se você ouvir um italiano falar, você tem a nítida impressão de que ele tá canTANdo (imita o sotaque italiano). Eles falam assim. Se você botar um afinador, você fica vendo lá as notas todas. (risos) Na nossa também, mas a nossa é uma coisa caótica. No italiano, você vê uma certa linha melódica no falar deles. Por quê? Porque eles herdaram dos antigos romanos essa fala realmente cantada que havia. Parece que no grego mais ainda. Tanto que não se distinguia na Grécia Antiga, não se distinguia poética de música. As duas artes andavam juntas. A música era uma parte da poética. Bom, então a prosódia, pra nosso efeito, é isso. É fazer casar as sílabas tônicas das nossas palavras com os tempos fortes da música.
Klaus Bentes: Como trabalhar nessa área de versionista para dublagem?
Félix Ferrà: Como trabalhar? Como trabalhar nesse trabalho? Rapaz… Esse “como” é um como do tipo como que eu me aproximo, como que eu me faço conhecer, né? É um pouco similar ao problema dos dubladores, né? Acho que é um pouco parecido com o problema do dublador. O que eu vejo o dublador fazendo é vindo pra porta do estúdio, pedindo pra falar com diretor, pedindo pra ser chamado pra um vozerio. Eu diria que é um pouco por aí. Seria ir pra porta do estúdio e tentar conversar um pouco com o diretor musical, se oferecer pra fazer um teste, alguma coisa assim. Não sei o que mais lhe dizer. Nunca me vi assim tendo que aconselhar alguém nessa área. Comigo foi na forma que eu lhe disse, o estúdio precisava de alguém. Naquela época, os produtores estrangeiros eram extremamente rigorosos com isso.
Na época que eu comecei, havia uma exigência muito grande, tanto é que por isso que as casas tinham uma dificuldade grande de conseguir alguém, porque lá fora eram grandes nomes de produção musical, eram pessoas com aquela fama, “ah, fulano que fez Rei Leão, fulano que fez Aladdin”. Eu não falei pra você que eu passei quase um ano sendo testado? Era com essas pessoas que você tinha que lidar. Quando eu comecei, havia uma filtragem muito, muito, muito forte. E hoje em dia, eu vejo que tem muita gente fazendo versão por aí basicamente porque pegou e fez, e alguém gravou. O que que eu tô querendo dizer com isso? Que me parece, me perdoe se eu estiver enganado, mas me parece que hoje está mais fácil de trabalhar com isso do que quando eu comecei. Me parece, não sei. Então acho que é por aí, procurar os diretores. Porque assim, o versionista vai trabalhar pro diretor na verdade. O diretor só vai gravar a versão dele se o diretor gostar. Então o seu trabalho é conquistar um diretor. (risos) Como eu sempre fui o meu próprio diretor, eu não tive muito esse trabalho, né? Mas é importante entender que eu fui contratado para ser diretor. Como gostaram das minhas versões, então eu acumulei as duas coisas. E depois acumulei também a parte de edição, porque em algum momento passou a ser fundamental editar. Como eu editava, acabei fazendo as três coisas.
Conclusão
Eu adorei fazer essa entrevista, porque o nome do Félix foi o que mais vi nos créditos de dublagem dos filmes e séries musicais que eu assisti quando criança e sempre tive curiosidade para saber mais sobre ele.
E você? O que achou da entrevista? Me conta nos comentários! E me fala quem do mundo das adaptações musicais você gostaria que eu entrevistasse.
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