Poucas versões me causaram o efeito que essa versão me causou. O ano era 2016. Eu fui escutar a versão brasileira de uma das canções de Wicked. A música era “Thank Goodness”, chamada de “Que Dia” na adaptação.
Eu não sabia o que esperar da versão em português. Na época, eu não conhecia o trabalho dos versionistas Victor Mühlethaler e Mariana Elisabetsky. Antes de escutar a adaptação, ouvi novamente a canção em inglês várias vezes, acompanhando com a letra original e buscando prestar muita atenção em cada detalhe da composição de Stephen Schwartz. Cada ritmo, cada rima, cada pausa.
“Nossa”, pensei, “é um grande desafio adaptar essa música.” E de fato era: em entrevista ao blog ArteView, o versionista Victor Mühlethaler contou que, para ele, esta havia sido a música mais difícil de versionar do musical.
Então finalmente eu fui ouvir a versão brasileira da música (por um áudio na internet gravado por um fã, antes mesmo de assistir no teatro).
E o que eu achei? Sinceramente?
Eu fiquei em êxtase.
Sério.
Eu não tinha noção do que era possível de se fazer com a língua portuguesa. Juro: eu sentia que a cada rima mantida a minha alma flutuava mais alto. O sentido estava sendo passado, as rimas estavam sendo respeitadas, o ritmo, as rimas internas… Tudo estava lá.
Vou dar um exemplo. Na letra original, há um esquema de rimas maravilhoso, que é esse aqui:
WITH THIS PERFECT FINALE THE CHEERS AND THE BALLYHOO WHO WOULDN'T BE HAPPIER? Olha só o que está acontecendo aí. Logo que uma rima é completada, outra já começa. A primeira parte da palavra "ballyhoo" completa a rima com "finale", e a última sílaba da palavra vai rimar com "who".
“Ah, não dá pra manter essa rima,” pensava eu, ingenuamente. Afinal, se não conseguiram manter a rima interna na primeira estrofe de “A Whole New World”, de Aladdin, é porque o português não deve permitir essas brincadeiras, não é mesmo?
I can show you the world Shining, shimmering, splendid Tell me, Princess Now, when did you last let your heart decide? | Olha, eu vou lhe mostrar Como é belo este mundo Já que nunca deixaram O seu coração mandar |
Na época, eu não achava que perder essas rimas internas fosse algo ruim. Eu achava que era algo inevitável, uma parte intrínseca do processo de se versionar.
Ah! como eu estava enganado! Que bom! Que dia! Na letra em português, os versionistas nos presentearam com esta linda solução:
NESTE DIA TÃO LINDO COM TUDO SAINDO BEM QUEM PODE SER MAIS FELIZ
E o fascinante é que a versão inteira é cheia desses desafios solucionados.
Outro momento complicado é o dos monossílabos cantados alguns versos antes:
THERE'S A KIND OF A SORT OF… COST THERE'S A COUPLE OF THINGS GET… LOST
Antes de “cost” e “lost”, há uma longa pausa. Seria ótimo se desse pra colocar monossílabos também na versão. E é claro que os versionistas foram atrás das palavras perfeitas:
TEM UM PREÇO QUE A VIDA… TRAZ DAS ESCOLHAS QUE A GENTE… FAZ
E como se não bastassem essas complicações, a própria música foi composta numa grande variedade de ritmos.
A música começa com um compasso 5/8, que dá à música este ritmo:
1-0-0-1-0 | 1-0-0-1-0 |
Ou numa representação com setas:
↑↓↓↑↓ |↑↓↓↑↓ |
Depois, a música alterna entre os compassos 5/8, 2/4 e 6/8, e às vezes 3/4 e 4/4. Tantas mudanças de tempo resultam numa letra com um ritmo muito instigante, quase como uma fala improvisada; mas ainda assim seu ritmo obedece alguns padrões ─ é regular na sua irregularidade.
E a versão segue a métrica original à risca.
Dá para sentir no resultado final como os versionistas amam a obra original, pois não se contentaram em apenas fazer uma tradução “cantável”. Como se fosse um quebra-cabeça, eles foram atrás das palavras certas, das frases exatas, tudo para transmitir o conteúdo e a forma simultaneamente. Há um respeito enorme pela obra do Stephen Schwartz nessa adaptação.
A versão brasileira de Wicked, em particular esta canção, plantou uma sementinha na minha cabeça lá em 2016. Foi um divisor de águas pra mim, pois foi quando passei a adotar a mentalidade de que não existe música impossível de versionar, que se eu procurar bastante, eu consigo encontrar soluções em português para qualquer música de musical, pois a língua portuguesa é, sim, muito rica e versátil.
Nós, tradutores, trabalhamos com as palavras, por isso é importante conhecer bem nosso próprio idioma, estudá-lo e valorizá-lo. Isso também significa analisar os trabalhos feitos por escritores, tradutores, versionistas, poetas e letristas.
No meu caso, como versionista, eu estudo as boas versões. E com esta versão magnífica que nós, brasileiros, recebemos, não dá pra ser mais feliz.
Sugestão: ouça a canção em inglês e vá cotejando com a versão brasileira. Abaixo, eu trouxe dois trechos que considero os mais impressionantes dessa adaptação.
WE COULDN’T BE HAPPIER | NÃO DÁ PRA SER MAIS FELIZ |
RIGHT, DEAR? | NÉ, BEM? |
COULDN’T BE HAPPIER | TEM ALGUÉM MAIS FELIZ? |
RIGHT HERE, | NÃO TEM |
LOOK WHAT WE’VE GOT: | BELO FINAL |
A FAIRY-TALE PLOT | PR’UM LINDO CASAL |
OUR VERY OWN HAPPY ENDING | É COMO UM CONTO DE FADAS |
WHERE WE COULDN’T BE HAPPIER | QUE NÃO DÁ PRA SER MAIS FELIZ |
TRUE, DEAR? | OU DÁ? |
COULDN’T BE HAPPIER | COMO SER MAIS FELIZ? |
AND WE’RE HAPPY TO SHARE | NÃO HÁ COMO NEGAR |
OUR ENDING VICARIOUSLY | QUE É BOM PARTILHAR ESSE AMOR |
WITH ALL OF YOU | QUE EU SEMPRE QUIS |
HE COULDN’T LOOK HANDSOMER | MEU NOIVO É TÃO GALÃ |
I COULDN’T FEEL HUMBLER | E EU SOU SUA GRANDE FÃ |
WE COULDN’T BE HAPPIER | JÁ VEJO MEU AMANHÃ: |
BECAUSE HAPPY IS WHAT HAPPENS | O MEU SONHO SE TORNANDO |
WHEN ALL YOUR DREAMS COME TRUE! | O MEU FINAL FELIZ! |
THAT’S WHY I COULDN’T BE HAPPIER | ENTÃO NÃO DÁ PRA SER MAIS FELIZ |
NO, I COULDN’T BE HAPPIER | NÃO, NÃO DÁ PRA SER MAIS FELIZ |
THOUGH IT IS, I ADMIT | MAS EU VOU ASSUMIR |
THE TINIEST BIT | QUE PODE SAIR |
UNLIKE I ANTICIPATED | UM POUCO AQUÉM DO ESPERADO |
BUT I COULDN’T BE HAPPIER | MAS NÃO DÁ PRA SER MAIS FELIZ |
SIMPLY COULDN’T BE HAPPIER | SEMPRE SEI COMO SER FELIZ |
Well – not simply… | Bom – nem sempre… |
‘CAUSE GETTING YOUR DREAMS | “PRA SEMPRE FELIZ” |
IT’S STRANGE, BUT IT SEEMS | É TUDO QUE EU QUIS |
A LITTLE – WELL – COMPLICATED | MAS PODE SER COMPLICADO |
THERE’S A KIND OF A SORT OF … COST | TEM UM PREÇO QUE A VIDA… TRAZ |
THERE’S A COUPLE OF THINGS GET … LOST | DAS ESCOLHAS QUE A GENTE… FAZ |
THERE ARE BRIDGES YOU CROSS | É PRECISO ACEITAR |
YOU DIDN’T KNOW YOU’D CROSSED | QUE O QUE FICOU PRA TRÁS |
UNTIL YOU’VE CROSSED … | NÃO VOLTA MAIS… |
AND IF THAT JOY, THAT THRILL | E SE O AMOR NÃO TRAZ |
DOESN’T THRILL LIKE YOU THINK IT WILL | ALGO A MAIS QUE TE SATISFAZ? |
STILL – | MAS – |
WITH THIS PERFECT FINALE | NESTE DIA TÃO LINDO |
THE CHEERS AND THE BALLYHOO | COM TUDO SAINDO BEM |
WHO | QUEM |
WOULDN’T BE HAPPIER? | PODE SER MAIS FELIZ? |
SO I COULDN’T BE HAPPIER | EU GANHEI O QUE EU SEMPRE QUIS: |
BECAUSE HAPPY IS WHAT HAPPENS | O MEU SONHO SE TORNANDO |
WHEN ALL YOUR DREAMS COME TRUE | O MEU FINAL FELIZ |
WELL, ISN’T IT? | É? OU NÃO É? |
HAPPY IS WHAT HAPPENS | TODO SONHO PEDE… |
WHEN YOUR DREAMS | UM FINAL |
COME TRUE | FELIZ |
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