Fiz uma enquete no Instagram e no grupo Broadway Meme Fórum no Facebook perguntando quais foram as melhores versões já feitas no teatro musical e na dublagem.
O musical que recebeu o maior número de menções foi a versão brasileira de Wicked — que é de fato excelente. Então fica a pergunta: por que será que a versão brasileira de Wicked não recebeu o Prêmio Bibi Ferreira de Melhor Versão no ano em que concorreu?
Se foi por não saberem como avaliar uma versão, vamos juntos estudar:
Como avaliar uma versão
Saber discernir a qualidade de uma versão é muito importante por alguns motivos:
- deixa o público mais criterioso e mais exigente;
- capacita melhor os produtores de musicais e os estúdios de dublagem a decidirem que versionistas escolherem;
- incentiva os versionistas a estarem sempre buscando se melhorar, porque sabem que o público está cobrando um certo padrão de qualidade.
Eu já falei aqui neste blog sobre como versionar um musical. Naquela publicação, eu trouxe as cinco principais questões que se deve levar em consideração ao se adaptar uma canção para o português. São elas:
- Sentido;
- Rimas;
- Métrica;
- Prosódia;
- Clareza.
Esses cinco elementos são fundamentais e serão aprofundados aqui. Além deles, outros dois aspectos são importantes para se avaliar uma versão:
- Fidelidade à obra original. Uma versão, mesmo com toda sua originalidade e criatividade, não deixa de ser uma tradução. Por isso, é necessário que a adaptação mantenha a essência do original, tanto em seu conteúdo quanto em sua forma.
- Naturalidade do texto final. Uma versão será cantada por atores e ouvida pelo público. Então não adianta a versão ser muito fiel ao original, mas soar estranha para os ouvidos brasileiros. A adaptação será uma letra nova e, como tal, precisa soar como uma boa letra de música, sem parecer que passou por um processo de tradução.
Agora vamos ver esses conceitos na prática.
Defying Gravity: Desafiar a Gravidade
Na enquete que fiz, a versão brasileira de Victor Mühlethaler e Mariana Elisabetsky do musical Wicked foi a mais mencionada pelas pessoas, tendo sido chamada de “impecável” e “imbatível”. A adaptação da música Defying Gravity, especificamente, foi chamada de “perfeita” por um dos votantes.
Então vamos analisar Desafiar a Gravidade, versão de Defying Gravity, para descobrirmos se esses elogios são merecidos ou se a versão não é isso tudo.
Primeiro, precisamos cotejar a versão em português com a letra original. Essa etapa é importantíssima, afinal, como poderemos nos assegurar da fidelidade da adaptação se não a compararmos com a obra original?
As marcações coloridas são as indicações de rima, e os sublinhados sinalizam as sílabas mais fortes de acordo com a partitura. Pode ignorar essas marcações por enquanto; vou abordá-las ao longo do texto.
Defying Gravity | Desafiar a Gravidade |
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[GLINDA] Why couldn’t you have stayed calm, for once! Instead of flying off the handle – ! | [GLINDA] Você não consegue se controlar pelo menos uma vez na vida? Tinha que perder as estribeiras – ! |
I HOPE YOU’RE HAPPY I HOPE YOU’RE HAPPY NOW I HOPE YOU’RE HAPPY HOW YOU’VE HURT YOUR CAUSE FOREVER I HOPE YOU THINK YOU’RE CLEVER | EU SÓ ESPERO QUE ESTEJA BEM FELIZ METEU O SEU NARIZ BEM ONDE NÃO DEVIA MAS QUANTA TEIMOSIA |
[ELPHABA] I HOPE YOU’RE HAPPY I HOPE YOU’RE HAPPY, TOO I HOPE YOU’RE PROUD HOW YOU WOULD GROVEL IN SUBMISSION TO FEED YOUR OWN AMBITION | [ELPHABA] EU SÓ ESPERO QUE POSSA SE ORGULHAR QUE POSSA SUPORTAR SER SEMPRE SUBMISSA E TUDO POR COBIÇA |
[BOTH] SO THOUGH I CAN’T IMAGINE HOW I HOPE YOU’RE HAPPY RIGHT NOW | [AMBAS] É ESSA A SUA DECISÃO? EU SÓ ESPERO QUE NÃO… |
[GLINDA] YOU CAN STILL BE WITH THE WIZARD WHAT YOU’VE WORKED AND WAITED FOR YOU CAN HAVE ALL YOU EVER WANTED… | [GLINDA] NÃO DESISTA DO SEU SONHO VOCÊ FEZ POR MERECER E SE QUISER, AINDA É TEMPO… |
[ELPHABA] I know – BUT I DON’T WANT IT – NO – I CAN’T WANT IT ANYMORE… | [ELPHABA] Eu sei – MAS EU NÃO QUERO – Não – EU NÃO POSSO MAIS QUERER… |
SOMETHING HAS CHANGED WITHIN ME SOMETHING IS NOT THE SAME I’M THROUGH WITH PLAYING BY THE RULES OF SOMEONE ELSE‘S GAME | SINTO ALGO NOVO EM MIM NADA SERÁ IGUAL NÃO VOU ME SUJEITAR A REGRAS QUE ME FAZEM MAL |
TOO LATE FOR SECOND-GUESSING TOO LATE TO GO BACK TO SLEEP IT’S TIME TO TRUST MY INSTINCTS CLOSE MY EYES AND LEAP | É TARDE PRA TER MEDO É HORA DE DESPERTAR O MEU INSTINTO CHAMA E ME FAZ TENTAR |
IT’S TIME TO TRY DEFYING GRAVITY I THINK I’LL TRY DEFYING GRAVITY AND YOU CAN’T PULL ME DOWN… | DESAFIAR A GRAVIDADE TENTAR DOMAR A GRAVIDADE NÃO VÃO ME ALCANÇAR… |
[GLINDA] CAN’T I MAKE YOU UNDERSTAND, YOU’RE HAVING DELUSIONS OF GRANDEUR…? | [GLINDA] NÃO PERCEBE O QUE FEZ A SUA ILUSÃO DE GRANDEZA…? |
[ELPHABA] I’M THROUGH ACCEPTING LIMITS ‘CAUSE SOMEONE SAYS THEY’RE SO SOME THINGS I CANNOT CHANGE BUT ‘TIL I TRY, I’LL NEVER KNOW! | [ELPHABA] NÃO QUERO MAIS LIMITES CANSEI DE OBEDECER NÃO SEI NO QUE VAI DAR MAS HOJE EU VOU PAGAR PRA VER |
TOO LONG I’VE BEEN AFRAID OF LOSING LOVE I GUESS I’VE LOST WELL, IF THAT’S LOVE IT COMES AT MUCH TOO HIGH A COST | QUIS TANTO SER ACEITA FOI TÃO CARO ESSE AMOR SE ISSO É AMOR NÃO PAGO MAIS O SEU VALOR |
I’D SOONER BUY DEFYING GRAVITY KISS ME GOODBYE I’M DEFYING GRAVITY AND YOU CAN’T PULL ME DOWN… | VOU SUPERAR A GRAVIDADE DESAFIAR A GRAVIDADE NÃO VÃO ME ALCANÇAR… |
[ELPHABA] UNLIMITED TOGETHER, WE’RE UNLIMITED TOGETHER WE’LL BE THE GREATEST TEAM THERE’S EVER BEEN GLINDA – DREAMS THE WAY WE PLANNED ‘EM | [ELPHABA] NA IMENSIDÃO VOCÊ E EU NA IMENSIDÃO EU VEJO O DESTINO QUE PODEMOS CONSTRUIR GLINDA – NOSSA PARCERIA |
[GLINDA] IF WE WORK IN TANDEM… | [GLINDA] SEMPRE EM SINTONIA… |
BOTH THERE’S NO FIGHT WE CANNOT WIN JUST YOU AND I DEFYING GRAVITY WITH YOU AND I DEFYING GRAVITY | [AMBAS] JUNTAS VAMOS CONSEGUIR DESAFIAR A GRAVIDADE ULTRAPASSAR A GRAVIDADE |
[ELPHABA] THEY’LL NEVER BRING US DOWN… | [ELPHABA] NÃO VÃO NOS ALCANÇAR… |
[GLINDA] I HOPE YOU’RE HAPPY NOW THAT YOU’RE CHOOSING THIS | [GLINDA] EU SÓ ESPERO QUE SEJA BEM FELIZ… |
[ELPHABA] YOU TOO – I HOPE IT BRINGS YOU BLISS | [ELPHABA] TAMBÉM – BUSQUE O QUE SEMPRE QUIS |
BOTH I REALLY HOPE YOU GET IT AND YOU DON’T LIVE TO REGRET IT I HOPE YOU’RE HAPPY IN THE END I HOPE YOU’RE HAPPY, MY FRIEND… | [AMBAS] QUE A VIDA SURPREENDA E QUE NUNCA SE ARREPENDA EU SÓ ESPERO QUE NO FIM VOCÊ SE LEMBRE DE MIM… |
[ELPHABA] SO IF YOU CARE TO FIND ME LOOK TO THE WESTERN SKY! AS SOMEONE TOLD ME LATELY: “EV‘RYONE DESERVES THE CHANCE TO FLY!” | [ELPHABA] OLHEM PRO CÉU NO OESTE LÁ VÃO ME ENCONTRAR POIS COMO ALGUÉM ME DISSE: “TODOS TÊM DIREITO DE VOAR” |
AND IF I’M FLYING SOLO AT LEAST I’M FLYING FREE TO THOSE WHO’D GROUND ME, TAKE A MESSAGE BACK FROM ME | EU POSSO ESTAR SOZINHA MAS HOJE O CÉU É MEU QUEM DUVIDAVA, VEJA AGORA QUEM VENCEU |
TELL THEM HOW I AM DEFYING GRAVITY I’M FLYING HIGH DEFYING GRAVITY AND SOON I’LL MATCH THEM IN RENOWN | JÁ SEI VOAR SOBRE A GRAVIDADE DESAFIAR A GRAVIDADE E TODOS VÃO ME RESPEITAR |
AND NOBODY IN ALL OF OZ NO WIZARD THAT THERE IS OR WAS IS EVER GONNA BRING ME DOWN! | E OUÇAM BEM A MINHA VOZ: O MÁGICO E TODA OZ – AGORA VÃO ME VER VOAR! |
[GLINDA] I HOPE YOU’RE HAPPY! | [GLINDA] EU SÓ ESPERO! |
[CITIZENS OF OZ] LOOK AT HER, SHE’S WICKED! GET HER! | [CIDADÃOS DE OZ] OLHA LÁ, A BRUXA! BRUXA! |
[ELPHABA] …BRING ME DOWN! | [ELPHABA] …VOU VOAR! |
[CITIZENS OF OZ] NO ONE MOURNS THE WICKED! SO WE’VE GOT TO BRING HER… | [CIDADÃOS DE OZ] SEM PERDÃO À BRUXA PRENDAM ESSA BRUXA… |
[ELPHABA] AHHHH! | [ELPHABA] AHHHH! |
[CITIZENS OF OZ] DOWN! | [CIDADÃOS DE OZ] MÁ! |
Haveria muitas formas de começar a analisar uma versão, mas eu proponho esta ordem de análise: sentido, rimas, métrica, prosódia e clareza.
Sentido: a história está sendo contada?
Leia a canção como se fosse um texto em prosa. Procure uma tradução literal da música estrangeira se precisar. Você pode conferir a tradução de Defying Gravity aqui.
Nesta versão, o significado da canção foi mantido estrofe por estrofe. Mesmo utilizando outras palavras, a essência da música foi mantida.
Por exemplo, no verso “You can still be with the Wizard”, mesmo sem mencionar o Mágico na versão, conseguimos captar a mensagem que Glinda quis passar com “NÃO DESISTA DO SEU SONHO”. A palavra “sonho”, inclusive, estabelece uma conexão com a música O Mágico e Eu (The Wizard and I):
The Wizard and I | O Mágico e Eu |
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[ELPHABA] IS A TALENT THAT COULD HELP ME MEET THE WIZARD | [ELPHABA] É A CHANCE DE ESTAR PERTO DO MEU SONHO |
O uso de uma única palavra quando o original repete a palavra é um indício da boa qualidade da versão. Mesmo que não seja a tradução exata, essa repetição mostra o cuidado de respeitar os leitmotifs do musical.
O verso “TOO LATE TO GO BACK TO SLEEP” traduzido literalmente seria algo como “É tarde demais pra voltar a dormir”. Perceba como a versão resume essa mesma mensagem com “É HORA DE DESPERTAR”.
Nessa mesma estrofe, há um uso inteligente do espaço. No original, há dois “TOO LATE” (tarde demais) e um “IT’S TIME” (é hora). Na adaptação, o primeiro verso começa com “É TARDE” e o segundo com “É HORA”. Dessa forma, a versão consegue usar essas duas expressões de tempo que existem no original e colocar outra informação importante no espaço que sobra no início do terceiro verso.
Esses detalhes podem parecer irrelevantes, mas são justamente esses detalhes que fazem o público entrar mais na história. As palavras que preenchem as notas são escolhidas a dedo. Não há desperdício de sílabas.
Analisar o sentido da letra também significa observar se o texto faz sentido por si só. Nesta versão, eu diria que há apenas dois momentos questionáveis.
O primeiro é na frase “JÁ SEI VOAR SOBRE A GRAVIDADE”. O que seria voar “sobre” a gravidade? “Ah, é licença poética” — essa raramente é uma justificativa válida.
E o segundo momento é no verso “OLHEM PRO CÉU NO OESTE”. Esse “no oeste” quer dizer que a pessoa tem que estar “no Oeste” e olhar para o céu? Ou é para a pessoa, estando em qualquer lugar, olhar para o céu a oeste? Será que “do oeste” não seria mais adequado? Mas talvez seja só uma questão de gosto neste caso; nada que prejudique o entendimento geral.
Rimas: o esquema de rimas é mantido? As rimas são perfeitas?
Volte lá na versão e veja cada uma das rimas destacadas com cores.
Notou que todas as rimas são perfeitas?
O que seria uma rima imperfeita? Tentar rimar certo com ego, esquentou com sol. Nesses pares de “rimas”, não há uma correspondência total de sons finais.
A rima perfeita no teatro musical é uma necessidade, e há várias razões para isso. Dentre elas, o fato de que uma rima perfeita ajuda o ouvido a compreender o que acabou de ouvir. No teatro, o ouvinte não vai poder voltar para entender melhor.
Imagine a situação hipotética de haver uma música que tente forçar a rima apareceu com céu. Após a segunda palavra, o espectador vai ficar se perguntando se o que acabaram de cantar foi “seu”. É péssimo para o bom entendimento.
Mas para mim, particularmente, o melhor argumento em favor da rima perfeita é a sua beleza inerente. É tão belo ouvir uma rima perfeita. É tão deslumbrante quando um profissional da língua consegue usar bem seu próprio idioma e rimar alhos com bugalhos, eira com beira, isso com chouriço.
Uma rima imperfeita é fraca, débil, impotente. Um verso com rima falsa é um verso triste, capenga, que nunca atingiu todo seu potencial.
Felizmente, aqui nesta versão, apenas encontramos rimas perfeitas. Até mesmo a rima composta de “understand you’re” com “grandeur” é mantida com uma rima composta perfeita: “fez a” com “grandeza“.
Se houvesse uma rima imperfeita na versão, isso estaria desrespeitando um dos pilares da boa tradução que é a fidelidade ao original. Se na letra de Stephen Schwartz só há rimas perfeitas, não há por que existir uma rima falsa na versão.
Nesse quesito, Desafiar a Gravidade é nota 10.
Métrica: a adaptação se encaixa na melodia ou tem sílabas a mais?
Cada verso e estrofe é como um jogo de palavras-cruzadas: há um determinado número de sílabas disponíveis.
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E é dever do versionista encontrar a frase que tenha o mesmo número de sílabas do original.
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Se houver uma única sílaba a mais, uma nota terá que ser criada na partitura para acomodar aquela sílaba que não existia.
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Como exercício, faça o seguinte: escolha um verso da letra em inglês e conte nos dedos quantas sílabas ele tem; depois, faça o mesmo com o verso correspondente na adaptação.
Veja como as cinco sílabas do original foram respeitadas neste exemplo:
1I 2HOPE 3YOU'RE 4HAP5PY 🟩🟩🟩🟩🟩
1EU 2SÓ 3ES4PE5RO 🟩🟩🟩🟩🟩
Na maioria das vezes, para se respeitar a métrica, é o número de sílabas que deve ser mantido. Em alguns casos, porém, quando algum trecho é muito melismático (várias notas para uma mesma sílaba), é possível colocar mais sílabas do que há no original, desde que se respeite o número de notas. Nessas situações, a sensibilidade do versionista entra em jogo para decidir seguir as sílabas ou as notas.
Em Desafiar a Gravidade, os versionistas tiveram o bom senso de escolher prolongar o “gravida-a-de”, no “grav-it-y”, em vez de seguir exatamente o número de sílabas. Ouça os áudios abaixo acompanhando com os trechos da partitura:
Por ser o título da canção, manter a frase “desafiar a gravidade” era primordial. Então esse melisma na penúltima sílaba de “gravidade” é justificável.
Portanto, uma das formas de medir a qualidade de uma versão é examinando o nível de respeito à métrica original.
O ideal é que não exista nenhuma nota a mais. Mas caso a versão tenha criado uma nota ou transformado em melisma o que era silábico, verifique se foi por uma boa causa. A métrica foi levemente alterada para acomodar alguma palavra importante? Era uma frase que precisava entrar e não havia outro jeito de encaixá-la na melodia?
O fundamental é não descaracterizar a música. Isso significa não criar nota que não há no original (a não ser que seja extremamente necessário) e respeitar o estilo da canção.
Se uma versão vai acrescentando notas de forma adoidada sem um bom motivo, certamente ela não é boa.
Nesta versão de Defying Gravity, nenhuma nota a mais foi criada.
🟩🟩🟩🟩🟩
Prosódia: as sílabas tônicas coincidem com as notas fortes?
Cometer um erro de prosódia é dar ênfase na sílaba errada. Em música, isso significa colocar uma sílaba sem tônica (átona) numa nota muito forte.
A prosódia em Desafiar a Gravidade é quase perfeita. Algumas preposições (monossílabos átonos) recebem uma ênfase maior do que a ideal. Nada muito grave.
Em geral, uma ou duas silabadas (erros de prosódia) ainda são aceitáveis. Mais do que isso, já se pode chamar de desleixo.
Esta versão é muito boa em questão de prosódia. As notas mais fortes da melodia recebem as sílabas mais fortes das frases. Veja este exemplo e note como as tônicas das palavras se encaixam com a melodia já estabelecida no original:
AS SOMEONE TOLD ME LATELY:
POIS COMO AL GUÉM ME DISSE:
Imagine se a versão fosse a seguinte:
CO MO ALGUÉM ME DISSE JÁ:
Dói só de ver o verso anterior. A prosódia está toda errada.
Vejamos outros exemplos de prosódia perfeita nesta versão:
IT'S TIME TO TRUST MY INSTINCTS
O MEU INSTINTO CHAMA
CLOSE MY EYES AND LEAP
E ME FAZ TENTAR
IT COMES AT MUCH TOO HIGH A COST
NÃO PAGO MAIS O SEU VALOR
TAKE A MESSAGE BACK FROM ME
VEJA AGORA QUEM VENCEU
Ao analisar uma adaptação, veja se o versionista buscou respeitar a prosódia. Leia a letra em voz alta (sem cantar), encontre as tônicas de cada frase e verifique se elas batem com as notas mais fortes da melodia.
Fazendo isso com Desafiar a Gravidade, eu dou nota 9,9 no quesito prosódia.
Clareza: as frases são fáceis de entender? O sentido está claro? Há inversão?
A clareza se relaciona com o primeiro item, o sentido, mas vai além dele.
Leia estes dois exemplos:
Pelo cachorro foi mordido o menino.
O cachorro mordeu o menino.
As duas frases passam a mesma mensagem, mas a segunda é muito mais clara e direta.
Em poesia, não há tanto essa preocupação, porque o leitor pode ler na velocidade que quiser e pode voltar a qualquer momento para entender melhor. Uma música, porém, existe no tempo; a letra precisa ser compreendida enquanto é cantada.
Por isso, em letra de música para musical, deve-se privilegiar frases na voz ativa e sem inversão.
Voz passiva: o menino foi mordido pelo cachorro.
Voz ativa: o cachorro mordeu o menino.
Frase com inversão: Ouviram do Ipiranga as margens plácidas…
Frase sem inversão: As margens plácidas do Ipiranga ouviram…
Não há do que reclamar nesta versão de Defying Gravity quanto à clareza. Nota 10.
Deus está nos detalhes
Com os cinco elementos abordados acima, já se pode fazer uma avaliação de forma satisfatória de uma versão. Mas ainda há outros itens que merecem ser comentados. São detalhes que podem passar despercebidos pelo público e pelos atores, mas que fazem toda a diferença.
Um deles é a compensação. Quando alguma informação do original não pode ser mantida no mesmo lugar em que ela estava no original, o bom versionista fica atento às oportunidades de colocar aquela característica em outro local.
Isso acontece aqui. O verso “JUST YOU AND I” virou “DESAFIAR”, mas essa ideia do verso em inglês foi passada em outro momento: “VOCÊ E EU NA IMENSIDÃO”.
Uma compensação pode aparecer de diferentes formas: uma rima criada para compensar uma rima perdida, uma palavra colocada no verso seguinte ou na estrofe seguinte quando não coube no verso de origem. Em suma, o uso da compensação é um indicativo de que o versionista está a par da música como um todo e não está somente adaptando verso a verso.
Outra característica do original é a repetição do verso “I HOPE YOU’RE HAPPY” em contextos diferentes. No começo, é no sentido “espero que esteja feliz com a besteira que fez 😠”; no final, é “espero que você seja feliz com sua escolha 🥲”.
O bom versionista vai procurar um verso que possa ser repetido nos dois contextos. A adaptação “EU SÓ ESPERO” funciona muito bem e é uma solução ao desafio de “you’re” poder ser traduzido como “esteja” ou como “seja”:
EU SÓ ESPERO QUE ESTEJA BEM FELIZ
EU SÓ ESPERO QUE SEJA BEM FELIZ
Há a repetição do verso sem prejuízo ao sentido. Houve uma preocupação com a fidelidade ao original também nessas características sutis.
Outra questão que merece ser abordada é a busca pelas melhores palavras. A canção termina com o monossílabo “DOWN”. Diversos monossílabos em português poderiam ficar aí: chão, cai, fim, mal etc. Mas dentre tantas possibilidades, eu acho fantástico que tenham utilizado a expressão “bruxa má” aí. Fica tão perfeito que dá a impressão de que a letra em português foi feita primeiro. Mas é apenas fruto da busca pelas palavras mais fortes e mais adequadas. Isso se relaciona com o quesito da naturalidade, que mencionei no início do texto.
Finalmente, destaco o fato de terem sempre usado “desafiar a gravidade” e nunca “desafiando a gravidade”. Isso foi uma sábia decisão por algumas razões:
- mantém a rima interna que a palavra “defying” faz com outros versos;
- mantém um padrão: em inglês é sempre “defying”, então em português o ideal é que a versão escolha uma opção e fique sempre com aquela;
- fica melhor de cantar: esse som nasal de “desafiANdo” poderia atrapalhar as atrizes;
- fica mais bonito: essa parte é um pouco mais subjetiva, mas acho que a maioria das pessoas concordaria que um “desafiAR” é sonoramente mais bonito do que “desafiANdo”.
Ao analisar uma versão, você precisa estar atento a esses detalhes, porque são eles que separam a boa versão da excelente.
Para finalizar, proponho um exercício: escolha uma versão que você considere ótima e faça uma análise com este método. Tente abordar a avaliação da adaptação de forma racional, sem se deixar influenciar pela boa impressão que você já tinha da letra. Veja se o versionista seguiu esses princípios estudados aqui. Independente de você trabalhar nessa área ou não, você vai achar esse um exercício fascinante.
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