O desafio dos monossílabos

Quem saberá contar o enredo
Sem alterar o tom,
o teor e o desfecho (…)
Sem botar nem tirar uma sílaba?

Djavan, na música Sílaba

Um monossílabo é uma palavra formada por apenas uma sílaba.

Na língua inglesa, existem milhares de monossílabos. Uma pesquisa no Phonetic Word Search dá um resultado de 11932 palavras de uma só sílaba no inglês. Por isso, em letras de música, em poemas e na própria fala em inglês, os monossílabos surgem o tempo todo.

No português, no entanto, as palavras são mais espaçosas. A língua portuguesa dispõe de bem menos do que mil monossílabos.

Por isso, quando existe a necessidade de colocar um monossílabo numa adaptação musical, o versionista se vê diante de um leque bem menor de opções.

Mesmo diante desse desafio, os bons versionistas conseguem encontrar as melhores palavras de uma única sílaba que contam a história.

Hoje, vamos ver algumas versões nas quais era necessário encontrar um monossílabo para entendermos como os versionistas resolveram esses pepinos. No final do texto, darei de presente uma ferramenta que certamente lhe será muito útil.

Mas antes, um breve esclarecimento quanto ao propósito deste site:

Aviso legal

As publicações feitas aqui neste site são de autoria do tradutor Klaus Guilherme Bentes Aragão, de CNPJ 43.551.519/0001-70. Este blogue (musiklaus.com) é a execução de um projeto iniciado por mim em abril de 2016 e tem como objetivo criar um espaço de debate e estudo sobre versão musical, tradução, dublagem, cinema e teatro.

Quaisquer críticas negativas que eu tenha feito ou venha a fazer de alguma obra não devem ser interpretadas como ofensas ou ataques à honra do(s) seu(s) autor(es) nem têm a intenção de denegrir a imagem da obra ou a de seu(s) autor(es).

Tudo que é publicado aqui está de acordo com o Artigo 46 da Lei nº. 9.610/98.

LEI FEDERAL Nº. 9.610 DE 1998
DOS DIREITOS AUTORAIS

TÍTULO III: Dos Direitos do Autor
CAPÍTULO IV: Das Limitações aos Direitos Autorais
Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais:

III – a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra;

O uso de trechos de obras em inglês se enquadra no conceito de Fair Use, previsto na legislação estadunidense de direitos autorais.

Para mais esclarecimentos, entre em contato pelo e-mail presente no perfil do Instagram do blogue.

Os monossílabos

Vou começar por um dos meus exemplos favoritos. No musical Evita, o letrista Tim Rice faz uso de vários monossílabos na canção Rainbow High:

EYES! HAIR! MOUTH! FIGURE! (5 sílabas)
DRESS! VOICE! STYLE! MOVEMENT! (5)
HANDS! MAGIC! RINGS! GLAMOUR!  (6)
FACE! DIAMONDS! EXCITEMENT! IMAGE! (8)
Trecho de Rainbow High (Original Cast Recording/1979); letra de Tim Rice, música de Andrew Lloyd Webber.

Na adaptação feita para a montagem de 2022, o versionista Victor Mühlethaler realmente foi atrás dos monossílabos em português que pudessem tomar o lugar dos monossílabos do inglês:

MÃOS! PÉS! FIOS! ROSTO! (5 sílabas)
LUZ! COR! TOM! POSE! (5)
VOZ! CHARME! BRIO! LUXO! (6)
TEZ! JOIAS! IMAGEM! BRILHO! (8)
Trecho de Arco-Íris de Evita Open Air; versão brasileira de Victor Mühlethaler.

Repare que todos os nove monossílabos em inglês foram substituídos por monossílabos em português. Além dos dois monossílabos que já surgem numa tradução literal da estrofe (voice: voz, e hands: mãos), o versionista foi buscar outros sete: pés, fios, luz, cor, tom, brio e tez.

Para efeito de comparação, veja a adaptação de 1983 de Victor Berbara desse mesmo trecho:

Olhos, boca, rosto, magia... (9 sílabas)
Andar, dedos, mãos, peles... (7)
Olhar, sorriso, estilo, feitiço... (10 ou 11)
Diamantes, modelos, carisma, encanto. (11 ou 12)

Não houve a mesma preocupação de procurar por monossílabos. Nem mesmo o “voz”, que já aparecia numa tradução literal, foi utilizado! Com tantas sílabas e notas a mais, a música acabou ficando descaracterizada. O estilo da canção nesse trecho foi completamente alterado.

Há também situações em que o versionista precisa buscar não apenas monossílabos, mas ainda monossílabos que rimem!

Foi o caso da música Part of Your World, de A Pequena Sereia.

Na letra original de Howard Ashman, a Ariel tenta se lembrar de algumas palavras do mundo dos humanos. As palavras de que ela tenta se lembrar são feet (pés) e street (rua), que rimam entre si; depois, ela tenta se lembrar de burn (queimar).

Eu só posso imaginar a dificuldade pela qual os versionistas Mariana Elisabetsky e Victor Mühlethaler devem ter passado na procura pelas soluções em português.

Se a primeira palavra fosse mantida como “pés”, os versionistas teriam um total de 13 opções: crés (plural de cré), cruéis (numa pronúncia com elisão), dez, és, fez (sinônimo de fezes), féis (plural de fel), fiéis (com elisão), grés, lés, rés, réis, trés (derivada de tré) e viés (com elisão).

Dessas treze, só “dez” é útil. Mas criar uma frase que termine com “dez” na outra estrofe me parece um trabalho ingrato. Dificilmente sairia uma frase natural.

A palavra “rua” não teria como ser mantida em street, a não ser numa versão que não se preocupe com esses detalhes, que é o caso da adaptação para a dublagem do filme clássico. Que monossílabos poderiam substituir “rua”? Chão? Céu? Sol? Ar?

O que vemos na versão final é provavelmente fruto de várias tentativas com diversos monossílabos:

Part of Your World
(The Little
Mermaid)
O Meu Lugar
(A Pequena
Sereia)
WALKIN’ AROUND ON THOSE…
WHAT’DYA CALL ‘EM? OH, FEET.
COMO É PULAR NUM SÓ –
COMO ELES DIZEM? AH… .
STROLLIN’ ALONG DOWN THE…
WHAT’S THAT WORD AGAIN? STREET.
E SEMPRE CORRE ATRÁS
DO QUE O CORAÇÃO… QUER!
Letra original de Howard Ashman; versão brasileira de Mariana Elisabetsky e Victor Mühlethaler.

No verso terminado em burn, nós poderíamos pensar nas palavras relacionadas com “fogo” e “queima”: luz, sol, pó, dor. A solução a que chegaram os versionistas utiliza um monossílabo que se relaciona com o fogo (já que a queima causa dor) e ainda mantém a rima que existe com o verso seguinte:

WHAT’S A FIRE? AND WHY DOES IT…
WHAT’S THE WORD… BURN?

WHEN’S IT MY TURN?
COMO O FOGO QUE TRAZ CALOR
TRAZ TAMBÉM DOR?

FAÇO O QUE FOR

Em todas essas situações, os tradutores tinham a liberdade de alterar um pouco as frases originais. Podiam utilizar outros monossílabos do mesmo campo semântico ou que pelo menos passassem uma ideia próxima.

Às vezes, porém, é exigido do versionista que mantenha alguma palavra específica, tornando impossível seguir à risca a partitura original.

Isso aconteceu na primeira música de Wicked. Na canção No One Mourns the Wicked (letra de Stephen Schwartz), existe o seguinte trecho:

MIDWIFE AND WITCH’S FATHER
LIKE A FROGGY, FERNY CABBAGE
THE BABY IS UNNATURALLY

ALL
GREEN!!

Mariana Elisabetsky contou num curso realizado pelo Instituto Artium de Cultura:

A gente até achou um jeito de escapar de “verde”, porque green tem uma sílaba e “verde” tem duas. A gente tinha uma solução, mas o próprio compositor pediu, falou: “não, tem que ser verde, em todos os países é verde, então aqui vocês vão usar duas sílabas, sim, porque eu tô mandando.”

Mariana Elisabetsky

Victor Mühlethaler também contou essa história numa palestra dada aos assinantes da Translators101 em 9 de janeiro de 2021. Segundo ele, a adaptação deles respeitava esse monossílabo que TODOS cantam:

PARTEIRA E PAI DA BRUXA
MAIS PARECE UM REPOLHO
COMO É QUE FOI NASCER COM ESSA

TODOS
COR?!!

No entanto, como o versionista explica na palestra, o compositor queria que a palavra “verde” ficasse exatamente onde está “green” no original. Por isso, tiveram que colocar uma nota a mais no “green”, para que “ver-de” coubesse. Mas de maneira muito inteligente, os versionistas fizeram uma compensação.

Na primeira versão, a palavra “cor” rimava com duas palavras dos versos anteriores (“assustador” e “horror”). Já que a rima se perderia com a palavra “verde”, criaram uma rima que não havia no original para compensar essa perda. Veja abaixo o resultado depois dessa alteração:

PARTEIRA E PAI DA BRUXA
MAIS PARECE UMA ALFACE
EU NUNCA VI BEBÊ QUE NASCE

TODOS
VERDE!!

Eu adoro essa história que eles contaram porque podemos aprender algumas lições valiosas a partir dela:

  1. É dever do bom versionista encontrar uma adaptação que respeite a partitura original — isso significa manter monossílabos quando necessário;
  2. O versionista precisa ter a humildade de aceitar pedidos de alteração, seja da produção ou dos autores da obra, quando determinada palavra precisar ser mantida;
  3. Mesmo tendo que abrir mão de alguma característica da letra original, o versionista precisa estar atento às oportunidades de compensar as perdas — assim como os versionistas de Wicked criaram uma rima para compensar a nota a mais e a perda da rima tripla.

Também em Wicked, há um monossílabo no final do primeiro ato:

Defying
Gravity
(Wicked)
Desafiar
a Gravidade
(Wicked)
SO WE’VE GOT TO BRING HER…
DOWN!
PRENDAM ESSA BRUXA…
!

Abordei esse trecho na publicação da semana passada. A solução de colocar “Bruxa Má” é perfeita. O monossílabo “má” ser a última palavra do primeiro ato combina perfeitamente com o enredo do musical. Essa palavra também facilita a busca pelas rimas, já que podemos incluir as palavras terminadas em -á e as terminadas em -ar.

Em Hamilton, o autor Lin-Manuel Miranda faz uso de vários monossílabos. Alguns muito interessantes surgem na música Farmer Refuted:

SAMUEL SEABURY:
HEED NOT THE RABBLE WHO SCREAM REVOLUTION.
HAMILTON:
HE'D HAVE YOU ALL UNRAVEL AT THE
SOUND OF SCREAMS

(...)
SEABURY:
HEEDHAMILTON:
IF YOU REPEAT YOURSELF AGAIN I'M GONNA—

SEABURY, HAMILTON:
SCREAM

A brincadeira está na repetição dessas palavras em frases diferentes. Quando o Seabury fala apenas “HEED” e depois “SCREAM”, fica mais visível a necessidade de se colocar palavras de uma sílaba em cada um dos momentos.

Na minha versão, ficou assim:

SAMUEL SEABURY:
EIS A RALÉ CUJA VOZ REVOLTADA
HAMILTON:
REIS E RAINHAS NUNCA NOS
DARIAM VOZ

(...)
SEABURY:
EISHAMILTON:
EU NÃO QUERIA TER QUE LEVANTAR A—

SEABURY, HAMILTON:
VOZ

Lista de todos os monossílabos

Em todos esses momentos, uma lista de monossílabos do português teria sido muito útil. Pensando nisso, eu criei um documento no qual há uma lista de todos os monossílabos da língua portuguesa agrupados por rima.

Para obter essa lista, basta pedir acesso ao documento com uma conta do Gmail. Creio que será de grande valia para profissionais do idioma de várias áreas: poetas, escritores, letristas, versionistas, tradutores, linguistas e muito mais.


Comentários

Uma resposta para “O desafio dos monossílabos”

  1. […] momento complicado é o dos monossílabos cantados alguns versos […]

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *